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quinta-feira, 16 de abril de 2020

Camundongo


Ele se parece com o camundongo  "Mas vejamos agora este camundongo em ação. Suponhamos, por exemplo, que ele esteja ofendido (quase sempre está) e queira vingar-se. Acumula-se nele, provavelmente, mais rancor que no homme de la nature et de la vérité. É possível que um desejo baixo, ignóbil, de retribuir ao ofensor o mesmo dano, ranja nele ainda mais ignobilmente que no homme de la nature et de la vérité, porque este, devido à sua inata estupidez, considera sua vingança um simples ato de justiça; já o camundongo, em virtude de sua consciência hipertrofiada, nega haver nisso qualquer justiça. Atinge-se, por fim, a própria ação, o próprio ato de vingança. O infeliz camundongo já conseguiu acumular, em torno de si, além da torpeza inicial, uma infinidade de outras torpezas, na forma de interrogações e dúvidas; acrescentou à primeira interrogação tantas outras não resolvidas (...) Ali, no seu ignóbil e fétido subsolo, o nosso camundongo, ofendido, machucado, coberto de zombarias, emerge logo num rancor frígido, envenenado e, sobretudo, sempiterno." 
Fiodor Dostoievski (Como um Camundongo / Memórias do subsolo) 
(História da Feiura, Organização de Umberto Eco, tradução Eliana Aguiar, Record, 2014)