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sábado, 8 de dezembro de 2018

Entre sem bater


No fim da década de 1980, nos Estados Unidos, um grupo de políticos republicanos tentou abolir as verbas públicas para arte que mostrasse homossexualidade, feminismo, racismo e outros temas controversos. As "Guerras da Cultura" — como a polêmica ficou conhecida — foram em parte desencadeadas pelas imagens sadomasoquistas e homoerotismo de fotógrafos como Robert Mapplethorpe (1946-1989). No livro A Câmara Clara, Roland Barthes usa esta fotografia de Mapplethorpe para distinguir a foto erótica da foto pornográfica. A pornografia representa o sexo, faz dele um objeto imóvel (um fetiche). A foto erótica, ao contrário, não faz do sexo um objeto central, ela pode muito bem não mostrá-lo; ela leva o espectador para fora de seu enquadramento. "Como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver: não somente para 'o resto' da nudez, não somente para o fantasma de uma prática, mas para a excelência absoluta de um ser, alma e corpo intricados" ● As obras da série Braile, de León Ferrari (1920-2013), superpõe textos escritos em braile sobre reproduções de fotografias de corpos nus, imagens religiosas ou elementos de tortura, o que obriga o espectador a um paradoxo: deve-se tocar — mais precisamente percorrer a superfície do papel diante do eventual olhar dos outros. Esse contato, no entanto, não dará ao visitante a informação que procura. Tudo o que pode ver está compelido a um ato cego. "Para Ferrari, as questões de poder são debatidas e inseridas no terreno do corpo. É nesse espaço íntimo onde se define o alcance da liberdade de uma civilização. Convertido em testemunha, crítico e historiador, o artista rastreou a trama com a qual o poder político e religioso fez do corpo um campo de batalha: A arte, meu filho, é uma mulher muito bonita que chora quando a deixam sozinha. Às vezes a vemos muito digna com chapéus emplumados veludos e colares entre senhores que a convidam com champanhe. Às vezes alguns tantos sacerdotes acomodam-na em um altar e a nomeiam a grande virgem de uma hermética religião. Mas às vezes também por sorte e com todo seu beneplácito um bando escandaloso a rouba da igreja e a leva em procissão deita-a em um matagal e lhe arranca as quatro vestes e entre uivos e gargalhadas procede à fornicação conscienciosamente (isto é o que se chama etapa de gestação). Quando vir esta cerimônia, meu filho, não pare para escutar os prantos e lamentos de ciúmes e invejas dos frades e senhores que não a fizeram gozar" ● Capa e meia página do livro Pornografie, de Klaus Staeck, traz uma seleção de 286 fotos publicadas na imprensa: vítimas da Guerra do Vietnã, prisioneiros sendo torturados, brigas de rua, brutalidade policial, um manifesto sobre a violência do século XXI, tão sem sentido, tão obscena ● Segundo o filósofo alemão Herbert Marcuse (1898-1979), "a repressão sexual e a repressão social são indissociáveis em nossa cultura. Denunciou inclusive a aparente tolerância existente no liberalismo de certas sociedades industriais avançadas como uma pseudoliberdade, conduzindo no fundo ao conformismo".
© Robert Mapplethorpe, autorretrato, polaroid, 1975. Link Robert Mapplethorpe Foundation (Tudo sobre fotografia, editora geral Juliet Hacking, tradução Fabiano Morais, Fernanda Abreu e Ivo Korytowski, Sextante, 2012) / © León Ferrari, Sem título, 2004, poema União livre, de André Bretón, escrito em braile sobre fotografia de © Ferdinando  Scianna. Col. Alicia e León Ferrari / A arte, manuscrito, 1964 (León Ferrari: retrospectiva. Obras 1954-2006, Andrea Giunta (edição e organização), tradução Ana Paula Gomes, Cosac Naify, 2006) / © Klaus Staeck, Pornografie, Steinbach, Giessen: Anabas-Verlag, Günter Kampf, 1971. Link Klaus Staeck(Hilton Japiassú, Danilo Marcondes, Dicionário básico de filosofia, Jorge Zahar Editora, 2008)