Páginas

terça-feira, 1 de outubro de 2019

América Latina


"O jogo é este. Um documento preparado pelo serviço de pesquisa econômica da Secretaria de Agricultura dos Estados Unidos, só revelado a duras penas, porque o interesse oficial era mantê-lo em segredo para evitar polêmicas, diz o seguinte: — 'A menos que se faça revolucionária reavaliação das políticas agrícolas e de consumo em todo o mundo, os excedentes continuarão aumentando nos países ricos e a fome continuará aumentando nos países pobres'. Entre 1968 e 1970 os quatro maiores produtores de trigo (Estados Unidos, Canadá, Austrália e Argentina) reduziram de propósito, como manobra de marketing, suas plantações de 50 milhões para 32 milhões de hectares. Não há, afinal, nenhuma boa nova para os 500 milhões de famintos ● A história é nossa? O Brasil é estudado de cabo a rabo pelos norte-americanos, o que produz textos acadêmicos, algumas vezes engraçados. Num trabalho sobre a revolução de 30 o primeiro de seis itens é 'the Paraíba situation'. Mas a graça é episódica num conjunto cuja seriedade, e obstinação, se projeta na fixação de detalhes que dão ao fenômeno uma profundidade já distante dos pés da comunidade acadêmica brasileira. Na Xerox University Microfilms é possível obter documentos surpreendentes. Há na relação, estudos que possivelmente nunca serão feitos no Brasil. Judith Rae Shapiro, de Columbia, levantou as estruturas sociais e o papel do sexo entre índios Yanomama, do nordeste brasileiro. Nunca ouvi falar nessa tribo. O estudo a fundo do Brasil por acadêmicos norte-americanos dificilmente pode ser isolado das ações externas dos Estados Unidos. Uma tese da universidade de Columbia fala das futuras possibilidades em minério de ferro. E assim por diante ● Pinochet virou sinônimo de ditadura cruel, de brutalidade institucionalizada. Mas visita ao Uruguai, no momento, depois de estada no Chile, provoca a sensação surpreendente de que a opressão uruguaia é bem maior do que a chilena. Tem sentido procurar diferenças entre Pinochet e o governo cívico-militar uruguaio? O New York Times, que batia nessa tecla, já admite que a brutalidade na Argentina parte de comandos conhecidos, cujas cabeças estão à vista de quem quiser encará-las. Embora com a afirmação duvidosa de que melhora a situação dos direitos humanos, o sr. Todman está certo quando trata todos como farinha do mesmo saco ● Pode alguém imaginar Túpac Amaru cantando tangos? Foi a reação de um jurado diante da figura a óleo cujos traços lembram mais Gardel do que o herói popular peruano. Nenhum artista conseguiu o prêmio (cerca de dois mil dólares) oferecido pela Casa Popular do Peru. Foram recusados os 94 quadros apresentados. Para um outro crítico, Juan Acha, a questão é clara. 'Trata-se de incapacidade emocional produzida pelo esquecimento injusto e prolongado de um herói nacional de grande importância histórica, escreveu. Um outro quadro mostrou Túpac Amaru feito Buffalo Bill, de espingarda na mão e olhares de conquistador. A única menção honrosa pertenceu ao pintor Milnar Cajahuaringa, por uma cabeça muito parecida com a do herói. Mas o concurso exigia corpo inteiro numa tela de dois metros de altura por um de largura. Predominou um Túpac Amaru rechonchudo e puxado com força para o anão. A constatação é amarga. Os peruanos não têm ideia de como era seu herói nacional. Túpac Amaru permanece confinado em seu chapéu de 'quaker'" ● Trechos de crônicas políticas escritas por Newton Carlos (1927-2019), um pioneiro do jornalismo internacional.
(Newton Carlos, América Latina Dois pontos, Editora Codecri, 1978) / Logotipo Quaker, design © Saul Bass, 1969 / "Meninos e Meninas", de © Anna Bella Geiger, da série História do Brasil, 1975, cartões colados sobre fotos / © Guillermo Deisler, Sem título, 1977-79, colagem de recortes de jornal e fotocópias / Túpac Amaru (infelizmente não sei quem é o autor da ilustração)