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quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Silêncio


"A tentativa de não comunicar é, de qualquer modo, tão complexa quanto a tentativa de comunicar, e sem dúvida igualmente antiga. Mas a admissão formalizada dessa tentativa, desse enriquecimento do silêncio — mediante palavras, gestos ou sinais — é um fenômeno moderno que, no mundo ocidental, começou há menos de um século. Os filósofos cínicos, na Grécia antiga, que relutavam em dialogar, os padres do deserto, que se retiraram do mundo das relações sociais nos primeiros anos do cristianismo, 'o resto é silêncio', frase cunhada por Hamlet, da qual muito se abusou, prefiguram a nossa compreensão da impossibilidade de dizer. Mas é só no século XX que o poeta Stéphane Mallarmé apresenta, em desespero, a página em branco, Eugène Ionesco decreta, em suas peças, que 'o mundo impede que o silêncio fale', Beckett põe em cena um ato sem palavras, John Cage compõe uma música chamada 'Silêncio' e Pollock pendura na parede de um museu uma tela coberta de espirros mudos" (Alberto Manguel) ● Em 4'33" (1952), composição de John Cage (1912-1992), um pianista entra no palco, toma a postura de quem vai tocar e não toca nada. A música é feita pela tosse, o riso e os protestos do público, incapaz de curtir quatro minutos e trinta e três segundos de silêncio ● Em 10 de dezembro de 2013, a Anistia Internacional divulgou sua campanha para marcar a data da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O pôster "Um minuto de Silêncio. Um minuto de Esperança", foi afixado nas ruas de Montreal, e convoca o observador a refletir e participar — para o fim da violência e o abuso contra as mulheres. Brasil registra 1 caso de agressão a mulher a cada 4 minutos ● A síndrome de imunodeficiência adquirida, ou aids, é identificada pela comunidade científica no início dos anos 80. Em 1982, Larry Speakes, secretário de imprensa de Ronald Reagan, riu quando perguntado se o presidente estava acompanhando a disseminação da aids. Diante do silêncio do governo e desmonte de programas de bem-estar social, o artista, ativista e escritor Avram Finkelstein e mais cinco amigos, Brian Howard, Chris Lione, Oliver Johnston, Charles Kreloff e Jorge Socarrás se uniram para criar um cartaz que incorporasse um forte apelo gráfico para mobilizar a população. O grupo inverteu o triângulo rosa que os nazistas usaram para identificar homossexuais durante o Holocausto, e acrescentaram o slogan Silence = Death (Silêncio = Morte). As ações dos coletivos Silence = Death, Gran Fury e do Comitê de Ação Contra Aids, o ACT UP, historicamente, ajudaram a salvar muitas vidas ● You have not converted a man because you have silenced him (Você não converteu um homem porque você o silenciou), anúncio institucional da série Great Ideas of Western Man, arte de Ben Shahn (1898-1969), pintor e designer gráfico norte-americano de origem lituana, para a Container Corporation of America, empresa fabricante de caixas de papelão. Um artista socialmente engajado, Shahn era atraído por temas que lidavam com a injustiça social ● "O silêncio e, sendo muitos, chegavam a se emendarem uns aos outros como se não tivessem mais assunto / Um silêncio de fita crepe". (Wlademir Dias-Pino)
(Alberto Manguel, Lendo Imagens: uma história de amor e ódio, tradução Rubens Figueiredo, Rosaura Eichemberg, Cláudia Strauch, Companhia das Letras, 2001) / Capa do livro Sounds Like Silence. John Cage - 4'33", Inke Arns, Dieter Daniels, Spector Books, 2012 (John Cage, De segunda a um ano, tradução Rogério Duprat, Editora Hucitec, 1985) / Cartaz Minute of Silence Minute of Hope, 2013, Foto © Shayne Laverdière, Amnesty International, agência Cossette, Canadá / Cartaz Silence = Death, 1986, design Avram Finkelstein, Nova York (Link Avram Finkelstein) / You have not converted a man because you have silenced him, 1968, arte © Ben Shahn, CCA, Smithsonian American Museum (o título do anúncio toma emprestada uma frase do escritor John Morley)